A controvérsia em torno do atual tema do Exame de Proficiência em Medicina, ou “Exame de Ordem” para médicos recém-graduados, seguindo os moldes do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), interessa a todos os profissionaisda área médica, aos alunos de medicina e a toda a sociedade. A polêmica em torno do assunto é alimentada por opiniões divergentes baseadas em argumentos opostos nas duas correntes, contra e a favor do Exame de Ordem. Contudo, ainda estamos longe de um consenso em torno da racionalidade da realização dessa prova, tanto no sentido de seus possíveis reflexos na melhoria dos cursos médicos, quanto sobre o futuro exercício profissional dos recém-graduados em Medicina.
Apesar da relevância do assunto, observa-se que este ainda não é devidamente abordado no meio acadêmico. A partir de um estudo observacional realizado por Chehuen Neto et al. (2010), verificou-se que os estudantes de Medicina de uma universidade do Sudeste do Brasil têm baixos níveis de informação sobre o “Exame de Ordem” para médicos (1), o que é inquietante em virtude do fato de se tratar de uma questão discutida por várias entidades ligadas ao ensino médico e por estar em fase de simulação nos estados de São Paulo e Espírito Santo.
Esta proposta consiste na exigência de que, após receber o seu diploma, o egresso de cursos de graduação em Medicina tenha que se submeter a uma prova, e apenas no caso de ser aprovado, possa registrar seu diploma no Conselho Regional de Medicina, estando, então, habilitado a exercer a profissão. Já foram elaborados projetos de lei no Congresso Nacional visando instituir o “Exame Nacional de Proficiência em Medicina”. Existe uma petição pública online (Abaixo-Assinado) com o intuito de apoiar esses projetos e cobrar das autoridades um exame que definiria se o recém-formado está apto a exercer o seu trabalho como médico (disponível na página http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N27187).
O Brasil é o segundo país com mais escolas de Medicina no mundo, possuindo atualmente 197 cursos de graduação em Medicina. A cada ano, são abertas 16.876 vagas, das quais 58,7% em instituições privadas. De 2000 a 2011, foram abertos 77 cursos, sendo 52 por entidades particulares. Porém, de maneira geral não se estão formando bons médicos. Os que estão sendo formados não conseguem resolver problemas básicos de clínica médica, pediatria, ginecologia e obstetrícia.
Os que defendem o “Exame de Ordem” para médicos justificam essa posição pela proliferação de faculdades privadas de Medicina que visam tão somente ao lucro em detrimento do aprendizado significativo do aluno. Essa tendência estende-se a todo o país. No Estado da Paraíba, um dos menores estados da federação, existem atualmente sete cursos de graduação em Medicina funcionando e um já aprovado prestes a ser iniciado.
Sobre a qualidade do médico formado e a quantidade de novas faculdades e cursos médicos, não é de agora que tem sido pois ainda na década de 1990, já se alertava para o risco de multiplicação de cursos médicos e a banalização da profissão. Porém, mais do que nunca está ocorrendo uma "superprodução" de profissionais de Medicina, deseducados e mal preparados, analogamente ao que ocorreu nos Estados Unidos há 102 anos, quando se passou a chamar as escolas de Medicina de “fábricas para formar ignorantes” (2).
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) foi a entidade precursora a sustentar a proposta de um exame para avaliar os profissionais recém-formados, e tem se posicionado a favor da obrigatoriedade do exame em âmbito nacional. Esta avaliação não tem constituído ainda um “Exame de Ordem”, uma vez que a inscrição no teste nos últimos seis anos foi voluntária, passando a ser obrigatória em São Paulo apenas neste ano de 2012, mas mesmo a reprovação não impede o médico de trabalhar ainda. Assim, a garantia de certificação não virá com melhor desempenho na prova, e sim com a realização do exame. A primeira prova no novo modelo aconteceu neste mês de novembro, domingo, dia 10. Em seis anos de realização desta prova, 46,7% dos 4.821 alunos que a realizaram voluntariamente foram reprovados.
Apesar de apresentar restrições ao modelo de prova adotado no Estado de São Paulo para avaliar os futuros médicos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) é favorável à aplicação de uma avaliação nacional dos estudantes, mas afirma não ter um consenso sobre qual seria a melhor avaliação. A Associação Médica Brasileira (AMB) e a Associação Paulista de Medicina (APM) declararam-se favoráveis à aplicação da prova.
Contudo, a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) manifesta posição contrária à instituição no Brasil de qualquer tipo de Exame de Habilitação para médicos recém-graduados. Por outro lado, esta entidade reconhece a necessidade dos governos federal e estadual não autorizar a abertura de novas escolas médicas e de fechar as que não possuem condições mínimas de funcionamento. Entretanto, defende a criação de instrumentos de avaliação de conhecimentos, habilidades e atitudes que sejam aplicados em vários momentos do curso de graduação médica. O estudante que fosse insuficiente em uma dessas avaliações poderia se recuperar e ser novamente avaliado, sendo sua própria escola a responsável pelo suporte e formação (3). Os testes de progresso, que já estão sendo aplicados ao longo do processo de formação, podem trazer mais subsídios que um exame terminal.
Talvez um dos mais importantes movimentos no sentido de mobilizar a comunidade acadêmica e a sociedade de classes envolvidas com o ensino médico tenha sido o projeto da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), criado em 1991, com a participação de 11 entidades nacionais. O projeto surgiu como uma alternativa à tentativa de imposição de um “Exame de Ordem”. Este projeto propunha avaliar a escola como um todo: a estrutura física, o corpo docente, o projeto pedagógico e os estudantes, durante toda a formação e não apenas ao final do curso. Esta avaliação atingiu um grande número de cursos, com adesão voluntária ao processo, e os resultados apontaram a necessidade de mudanças (4).
A Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM) é contra a obrigatoriedade do Exame do Cremesp, pois o considera uma medida punitiva e entende que cabe ao Estado a oferta de cursos médicos de qualidade e gratuitos, assim como a fiscalização pelo MEC dos cursos já existentes como garantia da boa formação do profissional médico. O DENEM recomendou um boicote ao Exame de Ordem realizado ontem pelo Cremesp.
Não se sabe ainda se a realização dessa prova é a solução para minimizar o problema da má qualidade dos médicos formados, parece ser mais uma emendatosca a um soneto ruim. Uma avaliação terminal como essa é uma ferramenta grosseira e pouco acurada. No entanto, há que considerar que a situação da formação médica está preocupante. Como "classificar" os graduandos ineptos? Enquanto isso não ocorre, é preciso recorrer a algum tipo de crivo, mesmo que este não seja do tipo ideal.
O ideal seria que o próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC) realizasse uma prova terminal, mas que fosse aditada às avaliações que são feitas durante o curso e às avaliações do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) feitas a cada três anos, assim como incluindo as ferramentas instituídas pela Cinaem. Assim, não seria só uma avaliação terminal, e não haveria uma nota única para definir quem pode ou não exercer a profissão.
Isso precisa ser discutido e concretizado enquanto não se alcança um processo abrangente de revisão do aparelho formador no nosso país, com escolas de medicina possuidoras de infra-estrutura compatível, corpo docente qualificado, grade curricular e processo pedagógico adequados à realidade nacional. Após tal revisão, aí sim, teríamos maiores condições de entregar à sociedade brasileira graduandos da melhor estirpe técnico-científica e ética.
Texto escrito pela médica Rilva Munõz e publicado no site Dr. Teuto.
Imagem extraída de facebrodi.blogspot.com